No mundo ideal, homens, cães, ratos e pobres serão
todos iguais, mas uns serão mais iguais que os outros. Por Matheus
Pichonelli
Tempos atrás, escrevi neste site a história, real,
de um cão que resolveu colocar o focinho em uma vasilha de plástico,
ficou preso e saiu em disparada com o latido sufocado no recipiente
(Leia clicando
AQUI).
De onde estava, vi metade da cidade se mobilizar para salvar o pobre
que, no desespero, cruzava as ruas sem a menor prudência. Dava dó.
O
garapeiro, o guarda de trânsito, os motoristas e os casais de namorados:
não houve quem, diante da cena, não se mobilizasse para arregaçar as
mangas e salvar o animal. Foi daquelas provas de que a humanidade ainda
tinha jeito: não perdeu a sua capacidade de sentir nem de transferir a
sua humanidade a quem passa por apuros. É o que se chama de
alteridade, ainda que o
outro tenha rabos e patas.
Foi o que pareceu, também à primeira vista, o resgate na última
semana dos cães da raça Beagle em um laboratório de testes em São Roque,
no interior de São Paulo. Segundo as primeiras notícias, os cães
estavam assustados e alguns, machucados. Em um país que só agora parece
pegar gosto em se mobilizar para exigir direitos de naturezas múltiplas –
da redução da passagem de ônibus ao fim da corrupção, da gripe e da
maldade em todos os corações – o direito dos bichos virava uma pauta –
digníssima, note-se.
Ao que parece, é cada vez maior o número de pessoas
indispostas a aceitar maus-tratos em animais. Um grande avanço para
quem, até pouco tempo atrás, aprendia a cantar na escola um hino ao
aniquilamento felino. Hoje, quem ousou um dia atirar o pau no gato não
se elege nem para síndico do prédio – o vereador mais bem votado da
maior cidade do País, por sua vez, tem o desenho de um cão, e não a sua
foto, como bandeira de campanha.
A consolidação das leis de proteção de animais e a construção de
hospitais públicos veterinários são símbolos dessa transformação. (Dia
desses, um vizinho bateu à porta da casa de minha mãe com uma ameaça: se
o nosso gato voltasse a arranhar a lataria do seu carrão, o gato
apareceria envenenado e morto em casa.
Diante da gentileza, ela foi até
uma delegacia da Polícia Civil e registrou o boletim de ocorrência. Saiu
de lá com a garantia de que se o gato tivesse uma simples gripe a
partir dali, o sujeito seria intimado, acusado, eventualmente processado
e eventualmente preso por maus tratos. Sem direito a fiança. Ao menos
na lei, o direito à humanização dos bichos prevalece sobre a humanização
dos automóveis. E é bom que seja assim).
O episódio do resgate dos Beagles, no entanto, diz mais sobre o nosso
encarceramento do que o dos bichos. Diz muito também sobre a alienação
cultural em relação ao que nós mesmos consumimos e alimentamos. É mais
ou menos como se, aos 30 ou 40 anos, alguém se chocasse ao descobrir
como é que as crianças vieram parar no mundo.
No caso, não as crianças,
mas as vacinas, os medicamentos, os tratamentos, os testes. O que não
deixa de ser curioso: nosso primeiro contato com as galinhas é uma caixa
de isopor com doze ovos que não foram gerados espontaneamente em uma
gôndola de supermercado. Tampouco o churrasco do fim de semana.
O que os
olhos não veem, dirão os despreocupados, o coração não sente, e não
precisamos assistir ao aniquilamento de bois e vacas nos pastos e
frigoríficos para saber como surge o almoço, nosso e dos
pets a
quem oferecemos abrigo, proteção e alimento. Nesse sentido, a
visualização da dor, simbolizada pelos Beagles – como não querer levar
para casa? – parece ter produzido uma revolta tardia.
Como escreveu um
amigo: como vocês achavam que eram feitos os testes de medicamentos? Com
jacas?
A resposta pode ser bem melhor do que as que vêm sendo formuladas
após o episódio. Por exemplo: transparência, monitoramento, redução do
uso de animais e métodos para evitar a dor desnecessária são mais do que
recomendáveis. Inclusive para a produção de alimentos. Hoje, a imagem
das empresas está diretamente associada à sua responsabilidade em
relação ao meio – e, consequentemente, à sua capacidade de evitar
desperdícios, o uso de trabalho infantil ou escravo e a ação agressiva
ao ecossistema.
O uso de animais em laboratórios passará pelo mesmo
processo: quanto menos cruel o processo, mais chances de a pesquisa ser
socialmente aceita. É o que vai separar os tempos futuros, de testes com
células-tronco e outras inovações, com os tempos ancestrais, de
sacrifícios, imolações e desprezo à vida, qualquer forma de vida.
A se notar as manifestações sobre o episódio, no entanto, ainda
estamos longe desse salto civilizatório. Não que adorar animais seja
sinônimo de desprezo a pessoas. Mas o precedente é, no mínimo, curioso.
Em conversas, posts e artigos de jornais, o que se vê é a confirmação de
um movimento, já citado aqui outras vezes, contraditório: a humanização
dos animais e animalização do ser humano.
Na crônica citada, recorri a
uma sociologia de boteco para rabiscar uma explicação ao fenômeno: à
medida que as cidades crescem, passamos a conviver cada vez mais em
ambientes insalubres; esbarramos no trabalho, nas escolas, nas casas de
vizinhos e outras instituições fechadas com todo tipo de competição,
ganância, trapaça, preconceito e intolerância.
Nesse ambiente, nos
animalizamos
e a ideia de lealdade se transforma em valor absoluto – e raro pelo
contraste. Nessa, os cães ganham uma aura sagrada, mais ou menos como
uma divindade indiana: são leais, amorosos, gostam da gente quase
gratuitamente e não pulam o muro de casa para nos trair com o dono do
cão vizinho. Os homens, nessa visão, são abjetos, pouco confiáveis.
Elimináveis, portanto.
Nos jornais, como a candidatar-se ao Prêmio Relincha Brasil 2013 –
expressão de outro amigo – houve quem escrevesse que, em vez de Beagles,
a ciência usasse humanos em seus testes. Por exemplo, presidiários.
Eles poderiam, chegou a sugerir a colunista, aceitar atuar como cobaias
em troca da redução das penas. Não poderia ser mais clara: não aceitamos
menos do que a humanização dos animais, mas não nos importamos com o
estabelecimento de humanos de segunda categoria.
Os Beagles estariam,
assim, em uma categoria intermediária entre os brancos livres detentores
de direito e os negros, pobres e mulatos, os únicos que afinal cumprem
pena, sem serem dignos de pena, no Brasil - ainda que mofem em detenções
insalubres sem o direito sequer de serem julgados. Franz Kafka, que no
livro
A Metamorfose transformou o personagem Gregor Samsa em um
enorme inseto – seu alter ego desprezado por sua tuberculose, segundo a
interpretação mais plausível – não iria tão longe.
Séria ou não, a
proposta, de apelo popular indiscutível, lançou as bases de uma nova
categoria de indignação: a humanização seletiva. Os ratos deixados para
trás na operação resgate em São Roque não poderiam se sentir menos
prestigiados.